domingo, 22 de dezembro de 2013

A Procura da Poesia


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade 






quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Intertexto


Primeiro levaram os negros 
Mas não me importei com isso 
Eu não era negro 
 
Em seguida levaram alguns operários 
Mas não me importei com isso 
Eu também não era operário 
 
Depois prenderam os miseráveis 
Mas não me importei com isso 
Porque eu não sou miserável 
 
Depois agarraram uns desempregados 
Mas como tenho meu emprego 
Também não me importei 
 
Agora estão me levando 
Mas já é tarde. 
Como eu não me importei com ninguém 
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht

sábado, 26 de outubro de 2013

O Tejo

    O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. 

    O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.
    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso porque pertence a menos gente,
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia.


    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.

    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

       
    Alberto Caeiro

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Influxo




Invadido pela eternidade entre Augusta e Paulista, oh yeah. Como Breton 
buscando a curva na sombra, molhando palavras e preenchendo minha 
pseudo-poesia com a estética falida.

Meus cabelos pegam fogo e meu corpo viaja por dentro d'água que implode no asfalto 
revestido de sêmen e cocaína. Ando pelas ruas e um sarcasmo exclusivo me acompanha, 
mulheres vestidas com seus melhores sonhos desfilam beleza excessiva e 
fazem meu 
nauseado estômago viver um estado de plena primavera.

É quando folhas da nostalgia voam sem destino, apenas voam. 
E um olhar começa florir e reconstruir todo um verão.

Seus segredos gritam pelas minhas palavras em silêncio, os ouvidos ejaculam 
com a melodia dos anjos nesta noite em que misturamos álcool com nossas 
piores decisões. 

Soul apenas um escritor de vidros embaçados e ideias embaraçadas que sabe 
o segredo para viajar de graça. Mas o que importa é que ninguém perguntou 
nada. 

Sozinho, aqui estou. 
Rumo antissocial.

Leo Castelo Branco 

sábado, 24 de agosto de 2013

O Haver

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior

De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade

Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto

Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes

terça-feira, 14 de maio de 2013

Dialética


Em comemoração ao centenário do nascimento de Vinicius de Moraes publicaremos mensalmente um poema (ou mais que um) como homenagem ao nosso querido poetinha. 



É claro que a vida é boa 
E a alegria, a única indizível emoção 
É claro que te acho linda 
Em ti bendigo o amor das coisas simples 
É claro que te amo 
E tenho tudo para ser feliz 
Mas acontece que eu sou triste...

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Vinicius

Em comemoração ao centenário do nascimento de Vinicius de Moraes publicaremos mensalmente um poema (ou mais que um) como homenagem ao nosso querido poetinha. 


Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Bárbara




Com nova licença poética

Quando nasci, uma tia baixinha
dessas bem baixinhas e brabas
disse: Vai, menina! Ser Bárbara na vida! (batizou-me)

Gauche já foi o Carlos
Carregou bandeira a Adélia
Por causa do Chico Buarque, serás então Bárbara
(somente Bárbara, diria um poeta, anos mais tarde)

Tomei a sina pra mim
E bora ser Bárbara, pois sim!

A vida talvez fosse azul...
Não fosse a sina assumida
Ser bárbara assim todo dia,
Coisa que dá um trabalho!

A moça atrás das lentes de contato
Tem olhos que ninguém sabe a cor
Diplomática que aprendeu a ser,
Tem muitos, muitos amigos (e sonhos)
A moça atrás das lentes de contato.

Então a moça, bárbara que era, quis viver muitas vidas
E resolveu ser atriz
(não admitira ela que houvessem outras vidas que por ela não fossem vividas)
E quis viajar muito pra conhecer pessoas e lugares
(não admitira ela que houvessem pessoas e lugares que por ela não fossem conhecidos)

Aí às vezes ela brada:
Meu Deus porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraca.

Mundo mundo, vasto mundo
Mais vasta é minha sina
Vou cumprindo, acertando e errando
E pra quando erro (e são tantas vezes)
Tenho em mim flor de lótus
e emerjo, na superfície
para florescer e errar
quantas outras vezes for necessário.

(Para ser Bárbara, há de ser desdobrável. Eu sou.)


Bárbara M. Vieira 

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