domingo, 15 de novembro de 2009

Veríssimo

Provocações

A primeira provocação ele agüentou calado.
Na verdade, gritou e esperneou.
Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas.
E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe.
Uma porcaria.
Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento.
Não gostou nada daquilo.
Mas ficou firme.
Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça.
Tudo bem, gostava da roça.
Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado.
Resistiu a todas.
Morar em barraco.
Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar.
Ir para um barraco pior.
Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego.
Queria casar, conseguiu uma submulher.
Tiveram subfilhos.
Subnutridos.
Para conseguir ajuda, só entrando em fila.
E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça.
O negócio dele era a roça.
Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária.
Não sabia bem o que era.
Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha.
Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária.
Em voltar à terra.
Em ter a terra que nunca tivera.
Amanhã.
No próximo ano.
No próximo governo.
Concluiu que era provocação.
Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo.
Para valer.
Garantida.
Se animou.
Se mobilizou.
Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir.
Estava disposto a aceitar qualquer coisa.
Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim.
Talvez amanhã.
Talvez no próximo ano...
Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu.
E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!

Luis Fernando Veríssimo

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cordel do fogo encantado



O Espetáculo.

Aqui do alto do cruzeiro
Onde o vento faz a curva pra voltar com mais coragem
Vejo o sol tocando na ponta do pára-raio da cruz
Elimino a ofensa do atrito
Atravanco o portão da ventania
Faço a caixa do mar ficar vazia
Boto o teto no vão do infinito

Pra dar pão pra os filhos que tem fome
Que chegam magos da guerra
O mensageiro do sonho
Nesse terreno que treme
Da magra mão estendida
Da paixão que grita e geme
Das curvas do firmamento
Da claridade da lua
Solidão do mundo novo
A batucada da rua
O espetáculo não pode parar
Quando a dor se aproxima
Fazendo eu perder a calma
Passo uma esponja de rima
Nos ferimentos da alma

O espetáculo não pode parar
Há certas coisas na vida
que eu olho e fico surpreso
Uma nuvem carregada
Se sustentar com o peso
E de dentro de um bolo d'água
Sair um corisco aceso.


Lirinha, Manoel Foló, Jô Patriota e Manoel Chudu.

domingo, 1 de novembro de 2009

João Cabral de Melo Neto

Morte e Vida Severina
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Extraído do Livro Morte e Vida Severina.
João Cabral de Melo Neto.

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