terça-feira, 23 de novembro de 2010

CATATAU


(Trecho)

"O verbo acende um fogo, o sujeito vem se aquecer, esse sou eu, como é? Daqui dá para ver o objeto muito bem, além — a terra de ninguém do silêncio. Aqui faz frio, peço desculpas por fazer tão frio, faz tanto tempo que eu sinto frio que já nem sinto frio, já nem sei se isso é frio.
 O Toupinambaoults de tanto farejar marofa virou farofa. Assim não vale. Fiquei idêntico, mesmo eu estou bem aqui refazendo os nós que desatastes e adesatastes: não há mais quem consiga desatar um nó, depois que o rei de Górdio invadiu a Pérsia. Occam ocultus, Occam vultus, Occam, o bruxo. Occam torceu a sinalização. Occam disfarçou as peripécias. Aonde vai com tanta pressa? Vou a toda Pérsia, vai depressa. Occam vê o óbvio. Deixa o óbvio ali. Pensa uma coração e o óbvio desaparece. Occam não pensa nada, se nadifica e falta. A análise começa em casa, palavra. Para limpar lágrimas, uma lápide. Passou por aqui um desconhecido. Assim é que se faz, viu? Aparece na hora. Faz assim, assim se faça. Não é viável que você esteja me vendo. Absolutamente. Consta, não; é exato. O óbvio vive aqui. É aqui-del-rei que ele mora, quanta demora — para um botafora. O óbvio está vivo. Escapou e saltou até lá. Lá saiu, lá ficou, lá vai ele. Lá é grande, grande lá. Ali e lá, algo vem sendo, eu sei o que é isso: é o óbvio. Era uma vez, ele ia. Era uma vez, eu dizia. Era uma luz, um dia. Eu via, era um som na minha vida, me ouvindo. Proponho uma testemunha, um teste. Esta é minha testemunha, dando testemunho para todos os lados. Eu me chamo Procurado , muitos, me têm procurado, poucos me têm achado. Eu estarei à sua direita, fazendo sinal. Sou o facho que atrai todos os olhares na escuridão das frases. Eu crio seres. O óbvio, como não podia deixar de ser, pontificou. Estamos estarrecidos. Ficamos desaparecidos por um pedaço de tempo, por um compasso de espaço, o colapso passou de raspão. 
Cumpra-se o óbvio. O evidente previdente escondeu-se do vidente, a música, por um acidente do acaso, por um acidente esquisito, ocasionou esta sinopse. Originou esta delonga, refletiu este fluxo, repercutiu na pergunta. A solução é ineficaz para debelar o problema. O evidente acaba de ser visto. Entre monstrolusco e monstrofusco, entre o colosso e a esfinge, Occam fica como está. Fica como ficará, fica com quem cessou. O extravagante dá um passo avante devagar e fica perante: é o óbvio, e assim não vale. Estou ciente como se deve. Acontece que tudo o que eu digo, acontece portanto. Isso, por exemplo, já está havendo há muito tempo. Depois eu vou dizer tudo, não digam que eu não avisei. Eu já disse que isso acontece, está acontecendo aqui. Vai haver um mal-entendido, fazendo as vezes de desentendimentoo. Os entes de razão estão indo caminho da execução, acontece algo daquilo que eu contoo. Uns dizem coisas que a gente não sabe o que dizer. Dizem exemplos. Por exemplo, cada qual com seu igual. Os transeuntes batem em retirada. os batentes continuam itinerantes, alguém me disse, e eu me lembro que já ouvi..."




LEMINSKI, P. Catatau. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1989.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Hilda Hilst (Crônica)






NOSSA! O QUE HÁ COM O TEU PERU?

Espírito natalino é um saco preto, hordas de delinqüentes, turbas de atoleimados te exigindo caras, posturas, o riso alvar, cestas, granas e tu mesmo basicamente arruinado, e criancelhas peidando adoidadas, escoiceando os ares, e mãezinhas num azáfama de um cair de tarde bordelesco, pra lá pra cá, e Jeshua entregue às traças, imagine o arrepio do Divino vendo o trotoar dos humanos, enchendo as panças, arrotando grosso, chupando os dentes, enchendo as latrinas, as mandíbulas sempre triturando, e o nenen lá na manjedoura, entre a vaca e o jumento... Que pai é esse que manda o filho pra um planeta de bosta como é a Terra... Se fosse um bom pai, o filho teria encarnado num corvo, a gente só ficaria olhando lá pro corvo nas alturas e dizendo: olha lá o divino, olha que lindo! E o divino com asas, só de nos ver de longe se escafederia, tem dó, pai, aquela gente não, por favor, pai, Abracadabra, pai, me transforma em fumaça, em rojão, em poeira, mas me afasta daqui, me afasta!

E aquele médico bonzinho que arrancou os olhos do Einstein e pôs no vidro e agora vai vendê-los por cinco milhões de dólares! Meu Deus, meu Deus, e o olho tristíssimo (porque viu muito e muito compreendeu) lá no vidro zoiando...

Sim, é verdade, eu tenho medo das gentes, pra dizer a verdade eu me cago de medo das gentes! O que eu tenho visto de pulhas, de máscaras atadas dia e noite sobre umas caras de pedra... O que eu tenho visto de mesquinharia, de crueldade, de torpeza, de estupidez... Que Natal? Que Natal? mudou o quê depois do nascimento do bebê?

"Óia a véia de novo enfezada! E até sendo paga pra escrevê só mardade! E nóis aqui no bem-bom comendo esses pardá, essas rola e esse gato gordo da vizinha! e que que tem cagá? que que tem rrotá? e chupá dente num é bom? e pur que ela chama a gente de delinquente? que que é horda, hen? e turba? E querê que o divino seja corvo, ó dotô, manda prendê essa muié, que eu até esqueci de fritá os ovo do menino Josué, também que que tem, é Natar e ele já tava morto!" Bom dia! Bom almoço!

Hilda Hilst

 

Crônica publicada originalmente no jornal "Correio Popular" de Campinas.



domingo, 7 de novembro de 2010

Neruda



Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar
por fim, não introduzir mercadorias
como o faziam os colonizadores
trocando baralhinhos por silêncio.
Pago eu aqui por teu silêncio.
De acordo, eu te dou o meu
com uma condição: não nos compreender.


Pablo Neruda

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