domingo, 14 de outubro de 2012

Tchekhov


Rembrandt Girl at a Window 1651

A Palerma


Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Iúlia Vassílievna, ao meu gabinete. Precisávamos acertar as contas.
- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - eu disse. - Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
- Quarenta...
- Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
- Dois meses e cinco dias...
- Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...
- Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete - dezenove. Subtraindo, restam... hum... 41 rublos. Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d'água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas - nem uma palavra!
- Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança de família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe um salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
- Eu não peguei! - sussurrou Iúlia Vassílievna.
- Mas eu tenho aqui anotado!
- Então, está bem... Que seja.
- De 41 vamos subtrair 27 - restam catorze.
Os dois olhos de Iúlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
- Eu só peguei uma vez - disse ela com voz trêmula. -- Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
- É mesmo? Ora, mas isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
- Merci - sussurrou ela.
Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.
- Merci por quê? - perguntei.
- Pelo dinheiro...
- Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
- Nos outros lugares eles não pagavam nada...
- Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?
Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: "É possível!".
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido e saiu... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: "Como é fácil ser poderoso neste mundo!

Anton Tchekhov

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Vinícius



Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue.
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon e no quintal de sua casa em Hollywood
um poço de petróleo, trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia.
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial
Por muitos anos a vir e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da Coréia. 
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros.
Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas "estações" do ano.
Está tudo muito certo, Mr. Buster - o Sr. ainda acabará governador do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.
Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?

domingo, 29 de abril de 2012

Bruno Villela


Vincent Van Gogh  Semeador com pôr do sol. 

Na vida, quem não acontece, anoitece. Eu não fui lido do outro lado por isso deitarei o sol aqui mesmo desse. Azar da sombra de alguém que me lesse. Deitarei o sol do mesmo lado que ele acorda. Se isso faz de mim um deus, ou um demônio, não sei, não importa. Sei que sou um homem incompleto, mas que transborda.

A vida engana. Às vezes a mão engasga e a boca esgana. A morte é sorte, o azar é zamba. A voragem de Deus te cega, e a coragem do diabo nega o Sol que lhe tampa. O ócio emprega. O negócio grampa. A perda une, a vitória pune. E na vitrola a canção é fúnebre e o silêncio é o que zune ensurdecendo homens impunes. A vida implume. A morsa é mansa, mas n’água avança contra a bonança. A vida cansa. Às vezes porque a dança já não é dança. Porque a moça almoça o prato dos dias frios. E o poema empoça. Já não é rio. Nem de Janeiro a março, abril. A prostituta é quem mais luta contra a mãe puta que lhe pariu. E na labuta, alguém comanda. E no descanso, a propaganda. Que vida bosta por estas bandas. E a perna grossa da moça roça uma na outra enquanto ela anda. E nada muda. A vida passa. O tempo gruda. Não quero o agora, quero a agonia da teoria e não da prática das desgraças plásticas do dia a dia. A vida corre. E morre. Enquanto a morte leva somente a aporia. Que fique a praça, que fique a gente. Naquela greve. Que fique a gente. Naquela neve. E o never change, e o never coming. My E.E. Cummings, quis ser poeta, mas sou poente.

Bruno Villela

(descaradamente roubado, do blog apaixonante: http://www.olho-roxo.blogspot.com.br/)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Bandeira

Não sei dançar.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz band.
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.
Mistura muito excelente de chás...
Esta foi açafata...
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal:
Tão Brasil!
De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugelê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral,
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!
Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!


Manuel Bandeira, Petrópolis, 1925

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