domingo, 29 de maio de 2011

Manoel de Barros




A poesia está guardada nas palavras — é tudo que
eu sei.
Meu fado é de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.


Manoel de Barros

sábado, 14 de maio de 2011

Drummond


Lasar Segall


Tarde de Maio

Como esses primitivos que carregam por toda parte o
maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 10 de maio de 2011

Pessoa


Túlio Tavares



ANÁLISE
 
 
 
        Tão abstrata é a idéia do teu ser 
        Que me vem de te olhar, que, ao entreter 
        Os meus olhos nos teus, perco-os de vista, 
        E nada fica em meu olhar, e dista 
        Teu corpo do meu ver tão longemente, 
        E a idéia do teu ser fica tão rente 
        Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me 
        Sabendo que tu és, que, só por ter-me 
        Consciente de ti, nem a mim sinto. 
        E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto 
        A ilusão da sensação, e sonho, 
        Não te vendo, nem vendo, nem sabendo 
        Que te vejo, ou sequer que sou, risonho 
        Do interior crepúsculo tristonho 
        Em que sinto que sonho o que me sinto sendo. 




Fernando Pessoa
(Cancioneiro

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